Wednesday, April 28, 2004

Sónia por acaso

Digo-te adeus num piscar de olhos.
Levo-te em números. Da porta, de telefone. E também da rua, é assim em Espinho.
Voltamos para os nossos, mas levamo-nos um no outro, num silêncio exclusivo dos dois.

Para mim chamaste Sónia há precisamente 7 horas e 30 minutos. Nasceste-me na sala de embarque do José Marti, arrabaldes de Havana. Morena e olhos escuros como eu.

Ao fundo a Verónica não é mortalmente bonita como dantes. Quer-me parecer que não voltará a ser.
Vejo-te em direcção aos braços do Raúl, pode ser uma das últimas vezes assim.

E seguimos os quatro, longe de sermos dois pares. Antes um. Trocado. Não por muito tempo. Já tinha saudades do norte do Porto.

António
Letra a letra

Sem nós. Que é como quem diz, só eu. Há barulho lá fora. Um desfile de universitários passa à frente de minha casa.
Ouço-os e não os invejo. Também eu já passei pelas mesmas loucuras, também eu já tive muita vontade de agarrar o
mundo assim, ao sabor de gritos e fumos, cervejas e noites. Agora isso passou. Agora sou só eu e esta vontade enorme
de viver as letras que aqui e ali vou deixando como testemunho de mudanças.
Há uma janela que me separa do barulho que vem da rua. Um vidro, um simples vidro. E de lá de fora ouço urras, ipp ipp urras!
A musica da rua torna-se cada vez mais forte. Aumento o volume do meu leitor de cds.
O que os faz saltar? O que os faz gritar de alegria? Que mundo esperam? Ouço barulho, muito barulho. Cai-me uma lágrima. Não quero mais passar os dias a aumentar o volume do meu leitor de cds. Imagino o rapaz do ponto de interrogação aos saltos de alegria agarrado a uma rapariga loura e magra, bonita, por sinal. Não é esse o mundo que quero. Não é esse o mundo que me escrevi. E eu escrevo o meu mundo. Letra a letra. Porque aí ninguem pode entrar.Porque só assim faz sentido.

Tua
Matilde

Wednesday, April 14, 2004

Adeus

Trinta e oito anos. Já cá estou. Não doeu. Feriu.
Foi na segunda-feira. Doze de Abril. Tive-te como presente. Um pressentimento de que irias aparecer,
acordou comigo nessa manhã. Não errei. Acabei por adormecer contigo. Foste embora na terça de manhã.
Percebi que era para sempre. Não chorei. Não gosto de chorar. Ficou o teu cheiro. E isso basta-me nesta necessidade
louca de seguir caminho sem ti.
Quase não falamos. Percorri-te numa insatisfação de esperas que só o tempo consegue apurar.
Que saudades.Fixaste os olhos nos meus enquanto os nossos corpos iam deixando de ser dois. Percebi que tinha chegado a hora. Disse-te adeus com um suspiro, sussuraste-me desejos. Quase que te disse « não vás». Mas não consegui.
Ficaram as palavras presas num abraço. A água da banheira fez o favor de fazer o resto e apagar os vestigios do teu corpo quente. Fiquei a ver a água a correr. Bateste a porta. E agora aqui estou eu. Sem nós.

Matilde
Chamada a pagar no destinatário

Dezasseis dias fora do país pode dar para isto. Lembrar-me de ti, a falta do teu cheiro,
o som da tua voz, o movimento das ancas, desenhadas no vestido preto, ao longo do passadiço na praia.
Quando saio, saio mesmo. O telemóvel ficou na cadeira, ao lado da cama onde dormias, debaixo da t-shirt.
E quando acordaste viste-te só nesse dia já muito para trás e nos outros até hoje.

Ligas uma, duas, três, dez, vinte, voltas a ligar, não há mais bateria, ouves-me no voice mail.

Devem ser duas da tarde no Porto. Talvez não estejas, mas talvez sim. Acordam-te, em espanhol, e meia a dormir
meia a sonhar, aceitas-me, falas-me do impossível de tudo isto.

António

Friday, April 09, 2004

Este ano


Estamos na Pascoa. Este ano, ao contrário do ano passado, vou passa-la sózinha.
Não vou estar para ninguém. Nem para a minha irmã, nem para o meu irmão, nem para os meus sobrinhos.
Este ano vou ser só eu. Eu e eu. Sinto um fel que me faz fugir de gente. Estou farta de ouvir palpites sobre o correcto e o errado de tudo.
Quero lá saber. Vou desligar o telefone. Vou ficar comigo e talvez assim encontre o caminho para sair de ti.

Matilde

Thursday, April 01, 2004

Interrogações

Encosto-me no sofá. Ponho o CD que me ofereceste no Natal. Ouço-o e volto a ouvi-lo.
Levanto-me. Vou até ao computador. Alinho os dedos no QWERT. Escrevo-te. Páro a meio e vou até à janela.
Acendo um cigarro, fumo-o devagar, desenho gotículas de água na janela, corações com os dedos. Lá baixo vejo alguém que passa. Um rapaz.
Não deve ter mais do que 27, 28 anos. Tem calças castanhas, camisola azul escura. Um raio branco. Não, não é um raio. É um ponto de interrogação.
Ele caminha e olha para o mar. Pára num quiosque. Compra um jornal. Adivinho-o desportivo. Imigino-lhe as dúvidas, os medos, as euforias, os desejos, os encantos, os recantos. Dá mais dois passos, pára para ler uma página que lhe chama a atenção.
Carros passam a correr do outro lado da rua. Gente e mais gente que se cruza nesta tarde de Abril.
Uma rapariga sentada numa esplanada olha para o rapaz do ponto de interrogação. É bonita, ela. Ele também. Imagino-lhes o futuro.
Um encontro, dois encontros, uma casa, um filho, dois filhos, dois rapazinhos, uma carrinha, um apartamento médio, fins de semana em casa dos pais dela, no Alentejo. Imagino-lhes uma vida. Olho de novo. O rapaz já vai no fundo da rua. A rapariga continua na esplanada. Chega um rapaz. Dá-lhe um beijo nos lábios. Senta-se ao lado dela. O rapaz do ponto de interrogação já não o vejo. Outros e outros rapazes, homens, meninos, velhos, passam por baixo da minha janela.
Ajeito-me de novo no computador. Revejo a rapariga da esplanada e lembro-me que um dia também eu já gostei de estar assim sentada na esplanada à espera de ti em fins de tarde só nossas. Pouso os meus dedos na primeira letra do teu nome. Custa, custa muito. Repito baixinho letra por letra as letras pelas quais te escreves. Um dia também eu e tu já tivemos a idade da rapariga da esplanada e do rapaz do ponto de interrogação.
E também tu lias jornais e paravas nas paginas do Benfica. Toca o telefone. É a minha irmã. Está preocupada comigo.Toca a campainha.
Será que és tu? Não, é o carteiro.

Matilde