Monday, March 29, 2004

Casas comigo?

Estou no Porto.
Peguei no telefone e com um pretexto qualquer liguei-te.
Gosto de ouvir a tua voz. Ainda que seja para me dizer não e não outra vez a convites simples, como tomar café, ir ao cinema.
É um prazer que magoa. Daqui a duas semanas faço 38 anos. Espero-te com um ramo de margaridas à porta, com a tua camisola azul clara - que te fica
tão bem - e talvez me peças para casar contigo! Sim, sim, sim. Se me deres tempo para responder, dir-te-ei sim sim sim.
E prometo que te faço esquecer aquela vez em que te disse não não não.
Desculpa-me. Desculpa-me uma vez e outra vez e as vezes que forem precisas. Tinha tanto medo! Mas agora não tenho.
A unica coisa que tenho é saudades do teu corpo a tocar o meu, do beijo ora suave ora devastador com que me percorrias em brincadeiras loucas de menino.
Daqui a duas semanas faço 38 anos e sonho com o momento em que vais chegar à minha porta com um ramo de margaridas, o teu sorriso envergonhado e me vais perguntar:«Casas comigo?»
E eu caso. Porque tu és o meu unico sentido. Não quero outro. Quero-te a ti.
Dia 12 de Abril faço 38 anos. Não te esqueças.

Matilde

Sunday, March 28, 2004

Prisões

Sentado. O sofá, novo como esta vida nova que começa, endireita-me o olhar.
O mar está a dormir.
Os segredos do ontem, contados na outra praia, conseguem flutuar. Venceram a corrente. Vieram de lá até aqui, como eu. Ainda são eu, os segredos do ontem.
Hás-de levá-los. Aguardas apenas uma ordem. Não dita. Tu sabes.

A Verónica ainda dorme. Não tenho muita vontade de olhar para ela.

António
Lisboa de nós


Lisboa, 1999.
Lisboa, 2004.
Tanto de nós que ficou nesta cor azul do Tejo.
Hoje acordei sózinha num hotel da Praça de Espanha. Não vejo os jornais de ontem espalhados pelo chão, nem as
tuas calças azuis escuras de bolsos encostadas a um canto. Não vejo os teus olhos enormes nem as tuas palavras
a pedir sono na manhã que desponta.
Tanto de nós que ficou nesta água que parece que não corre. Sou metade daquilo que era. Falta o sentido da água, falta
o mar a correr para nós e as mãos com os dedos entrelaçados em ruas que nos levavam a uma qualquer entrada de prédios, onde qualquer metro de espaço servia para amores de corpo e almas numa só.
E o tecto que girava e tu que ficavas assim como quem quer carinhos de menino num corpo de homem.
Lisboa, 1999.
Lisboa, 2004.
Vou para o Porto.

Matilde

Friday, March 26, 2004

Inicio (?)

O cigarro entre dois dedos da mão esquerda,o polegar que o aconchega.
«Importa-se que fume?»
«Sim, importo», respondi.
Olhos muito para além dos olhos. Ele faz girar o cigarro lentamente, bate com ele ao de leve na mesa.
Sorriso em mim. «Então, o que a trouxe até aqui?»
Olho-o novamente. Solto um ´"Hm" de desdém. Sinto-me ficar quente. Levanto-me.Bato com a porta.
Está um dia de sol fantástico. O céu está azul, azul como nunca. Apetece-me chorar. Chorar muito.
Entro no autocarro que me vai levar ao terceiro andar velho de um prédio ainda mais velho desta cidade velha.
Encolho-me em mim. Vejo-me na sombra do vidro.
«O que me aconteceu?», questino-me enquanto provo o sabor de uma lágrima que me escorre.
Sinto a vida correr nos carris e sinto-me perdida.
Lembro-me de ti. Não de agora, de há muito.
«Não achas que devemos falar?»
«Sobre o quê?»
«Disto...»
Pegaste-me na mão. Fizeste-me "Shiu".
Primeiro na cara depois cada vez mais num percurso direito a mim.
A respiração cada vez mais curta. Os passaros em voos lá fora.
"Shiu", fizeste-me.
Baixaste-me no corpo nesse percurso sem portagens.
"Shiu".
Paraste onde não se pára. «Ainda queres falar?»

Matilde

Thursday, March 25, 2004

Psicologias invertidas

Fui com a Ana ao psicólogo. Ele disse-lhe que ela precisa de psicanálise.
Não gostei dele. Trinta anos, mais coisa menos coisa, ar de engatatão.
Esticou-se na cadeira enquanto ela lhe contava que há oito anos que vive com o Osvaldo e que dormem em quartos separados. Ele olhava-a. Consigo adivinhar-lhe os pensamentos. Olhou-me de lado. Perguntou-me a profissão.
Levantou os olhos, disse que era seguidor dos psicalistas, falou de teorias. A Ana pagou 50 euros. Foi para casa a chorar. Merda de vida.
Hoje é dia de primavera. O Douro está cinzento, não sei se é da cor ou desta minha falta de vontade de o colorir.
Se não tivesse detestado tanto o psicologo da Ana esta tarde tinha-lhe telefonado e corrido para o consultório em busca de um divã.
Lembro-me deste dia, deste preciso dia, mas do ano passado. Deito-me no meu divã e choro-te.
Vou telefonar ao psicólogo da Ana.

Matilde


Happy Birthday

Em pé, óculos escuros, mãos nos bolsos, calças largas, descidas na anca, cor de camelo, t-shirt azul escura muita escura. Tem um raio, pelo menos parece um raio ao longe, um raio branco. Tem um raio visto ao longe, um raio que não é raio. É um ponto de interrogação sobre o peito.
Em pé, está o mar ali em baixo, está a areia até ele, suja, muito suja, tão como suja como em todos os 21 de Março. O vento está forte, vem de norte, neste dia, como em todos este dia, dos anos anteriores.
Cabelo castanho, foge para o loiro sem gel, mas castanho assim como está, efeito molhado e escuro. Sapatilhas em azul não tão escuro como o azul muito escuro da t-shirt.
Está sol e frio.

O primeiro dia de alguma coisa é sempre o último de tantas.
Em 27 anos, a primeira prenda de mim para mim. Uma casa. Um quarto, uma sala, uma cozinha, um wc, uma dispensa, uma varanda, um escritório. Um habitante. Eu.
O primeiro dia de alguma coisa é sempre o último de tantas.
É o fim dos dias na Praia da Aguda, do sol nesta esplanada, quase trezentos dias por ano. É mais ou menos sempre que não chove.
Em casa, a cama não volta a aparacer feita, o prato não há-de estar cheio por si só na mesa posta, nem a louça vai estar lavada por magia nos armários.
Em 27 anos, este é o primeiro aniversário, sem jantar de mesas juntas, cheias às dezenas. Hoje não estou para ninguém.
O Porto é silêncio à noite. Já quase não existem carris para o eléctrico. Costumava passar em frente, ali em baixo.
Em pé, cabelo mais aloirado, primeiros toques de bronze, boxers pretos, duas pedras de gelo e whisky na mão direita.

A campainha toca a uma hora em que não é susposto tocar.
É a Verónica, absolutamente fabulosa. Acabadinha de chegar de Lisboa. Acabadinha de sair dos monitores dos estúdios de produção. Diz-me que passou a tarde num vestido curto, preto. Diz-me que passou a tarde ora dentro ora fora de um Peugeot novo que vai ser lançado em Portugal em Abril. Diz-me que ficou perfeito, arrasta-me para o quarto, sem me dizer o quer. Deita-me de costas, amarra-me os braços, um a cada lado da cama e despe-se. Tem uma tanga preta, tão preta como o soutien. Vem para mim, com um lenço na mão. Cobre-me os olhos. Beija-me com o dedo que acabou de beijar e canta, sussura ao ouvido, já em cima de mim: "happy birthday to you, happy birthday to you".
De olhos vendados, vejo-a ficar nua. Em cima e depois em baixo.

António
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